
Proposta de cota para mulheres no Legislativo gera resistência entre parlamentares e revela o desconforto de sempre: quando elas ganham espaço, eles perdem o sono.
A promessa de um Congresso Nacional mais representativo voltou ao centro do debate — mas, como de costume, não sem resistência. Em discussão no Senado, o novo Código Eleitoral traz uma proposta ousada: reservar 20% das cadeiras do Legislativo para mulheres nas próximas cinco legislaturas, ou seja, por 20 anos. Parece simples, mas a reação dos parlamentares mostra que mexer no jogo do poder continua sendo um tabu quando se trata de gênero.
O Brasil é um dos países com menor representatividade feminina no Parlamento. Hoje, apenas 18% da Câmara dos Deputados é composta por mulheres. No Senado, são 15 das 81 cadeiras. É pouco, quase simbólico. Mesmo assim, a ideia de reservar espaço fixo para candidaturas femininas incomoda muita gente.
A proposta: 20% das vagas, mas com voto
O texto relatado pelo senador Marcelo Castro (MDB-PI) propõe a reserva de 20% das cadeiras nos legislativos municipais, estaduais e federal exclusivamente para mulheres. Mas essa não é uma “cadeira cativa”: para ocupar o espaço, a candidata precisa conquistar pelo menos 10% do quociente eleitoral — ou seja, precisa de voto, precisa fazer campanha, precisa convencer o eleitorado.
Não se trata de um privilégio, mas de uma tentativa de correção histórica num cenário ainda dominado por homens. A lógica da proposta é que, sem mecanismos objetivos de inclusão, as mulheres continuarão sendo empurradas para fora do jogo, mesmo com leis de incentivo e campanhas institucionais.
O velho discurso da “justiça eleitoral” — só quando convém
A sessão da Comissão de Constituição e Justiça do Senado, que analisava o tema, foi marcada por reações enérgicas. O senador Dr. Hiran (PP-RR) se mostrou incomodado com a possibilidade de candidatas menos votadas entrarem no lugar de candidatos homens com mais votos. Disse que o eleitor não entenderia essa “injustiça”.
O argumento parece técnico, mas esconde um desconforto político: por que tanto medo de dividir cadeiras com mulheres? A senadora Eliziane Gama (PSD-MA) não deixou passar: “O problema não é a proposta. O problema é a resistência de sempre. Estamos atrás até de países em guerra no ranking de representatividade feminina”.
A senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS) foi ainda mais direta: “20% é pouco. O ideal seria 50%. A cota mínima só escancara o quanto estamos longe da igualdade”. Já Zenaide Maia (Podemos-RN) lembrou que se trata de uma reparação, não de uma benesse. “A mulherada já provou que sabe legislar. O que falta é oportunidade.”
O recuo das garantias mínimas: fim da exigência de 30% de candidaturas femininas
Outro ponto controverso do novo Código é a possibilidade de extinguir a obrigação dos partidos de lançarem 30% de candidaturas femininas. Atualmente, para cada 10 candidatos, pelo menos 3 precisam ser mulheres, mesmo que o partido diga que “não achou nomes”.
O novo texto sugere manter os 30% de financiamento público para candidaturas femininas, mas dispensa os partidos de preencher a cota se “não encontrarem mulheres viáveis”. Em outras palavras: abre caminho para que as legendas voltem a priorizar os homens, travestindo isso de “escolha estratégica”.
O medo do novo sempre vem: eles querem decidir até quando elas podem participar
A resistência à cota revela mais do que machismo estrutural. Mostra o temor de perder o domínio de uma arena historicamente masculina. Ainda que mulheres representem mais da metade do eleitorado brasileiro, os partidos seguem sendo controlados por homens — e, não por acaso, escolhem homens para disputar os cargos mais altos.
A proposta da cota escancara essa contradição. O discurso da “meritocracia eleitoral” só vale quando convém. Quando a regra favorece o status quo, ninguém se incomoda. Mas quando ela propõe uma mudança real, mesmo que mínima, os gritos ecoam pelos corredores do Congresso.
E o novo Código ainda quer mexer em mais tabuleiros
Além da cota feminina, o novo Código Eleitoral traz:
- Quarentena de quatro anos para militares, juízes e policiais que quiserem se candidatar.
- Limites mais rígidos para pesquisas eleitorais, inclusive com possibilidade de punição.
- Proibição de disparos em massa de mensagens durante campanhas eleitorais.
- Fim da participação das Forças Armadas na fiscalização das urnas.
- Uniformização dos prazos de filiação partidária e desincompatibilização para 2 de abril do ano eleitoral.
- E, sim, a Lei da Ficha Limpa continua valendo: políticos condenados seguem inelegíveis por oito anos.
Medo do fim do monopólio
O que incomoda não é a falta de votos das mulheres, e sim a possibilidade real de que elas passem a disputar de igual para igual. O sistema político brasileiro foi moldado para ser masculino — e qualquer mudança é lida como ameaça.
A reserva de cadeiras não é o fim da democracia. Pelo contrário: pode ser o primeiro passo para uma democracia mais viva, plural e realista. O incômodo que ela provoca revela muito mais sobre quem se opõe do que sobre quem luta para entrar.
Porque quando elas ganham espaço, eles perdem o sono. E isso, talvez, diga mais sobre o poder do que sobre as urnas.
Por Redação