Por BdF
Um dos primeiros registros do que pode ser considerado uma festa junina no Brasil data do fim século 16, pouco mais de 80 anos após a invasão portuguesa ao território.
As palavras do jesuíta português Fernão Cardim, escritas entre 1585 e 1590, já indicavam que, no chamado novo mundo, a celebração dos santos católicos iria ser permeada pela influência indígena e, posteriormente, africana.
Cardim integrou uma das missões religiosas que percorreram o Brasil nesse período. Ele passou pelas capitanias da Bahia, Ilhéus, Porto Seguro, Pernambuco, Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Vicente, que depois virou São Paulo.
Em cartas direcionadas aos superiores em Portugal, o jesuíta descreveu a natureza do território, os costumes e condições de vida das populações originárias e o andamento do processo de catequização dessas comunidades.
Nos relatos, Fernão Cardim cita o São João como uma das festas cristãs que as comunidades originárias mais celebravam. As fogueiras eram ponto de atração e dialogavam com a importância que esses povos davam ao fogo.
“Suas aldeias ardem em fogos, e para saltarem as fogueiras não os estorva a roupa”, escreveu Cardim sobre o festejo.
Um outro fator também pode estar conectado ao apreço que as populações tradicionais dedicavam à celebração do santo católico. Indígenas de diversas partes da América do Sul, incluindo povos do Brasil, celebram o início de um novo ano no mês de junho.
A festa está ligada à chegada do inverno, à terra, ao sol e à colheita. O uso do milho em parte considerável dos quitutes dessa época no Brasil já era tradição antes mesmo da existência oficial dos festejos juninos.
Curiosamente, a história mostra que a celebração das mudanças de estações também esteve na origem das festas cristãs de junho na Europa. Com o crescimento do cristianismo no continente, as comemorações pagãs em honra à fertilidade da terra passaram a ser substituídas por homenagens aos santos católicos.
“Os povos mais ligados aos aspectos naturais tendiam a sacralizar esses elementos naturais, tais como a lua, o sol, a fogueira e as plantações. Eles consideravam esses elementos da natureza como seus deuses”, explica a pesquisadora, Bruna Castelo Branco, doutora em comunicação pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
Segundo ela, essa sacralização foi realizada por povos em todo o mundo, inclusive pelos romanos. A partir do domínio cristão em Roma, a Igreja Católica se apropriou dos rituais.
“Com a dominação da Igreja Católica e a difusão da religiosidade católica ao redor do mundo ocidental, ela passou a incorporar esses elementos. Era uma tentativa de trazer elementos religiosos cristãos para a celebração. Porém, foi difícil conseguir desvincular os elementos da natureza das celebrações e dos rituais, porque está muito vinculado também a aspectos antropológicos”, pontua a pesquisadora.
Bruna Castelo Branco escreveu um artigo sobre o tema junto com a colega Claudiene Costa, também doutora em comunicação pela UFC. No texto, Festas de São João: Das Origens à Atualidade, elas apresentam o resultado de uma pesquisa que analisou os primórdios das festividades e a era atual dos espetáculos juninos.
Claudiene Costa afirma que, mesmo atualmente, é possível identificar símbolos das celebrações ancestrais. “Há elementos que se repetem e é possível enxergar muita coisa em comum e muita transferência.”
A pesquisadora ressalta que, entre essas repetições, o caráter de reunião e coletividade está sempre presente.
“Por exemplo, sempre houve esse elemento da fogueira para os indígenas. Na Bíblia, a fogueira marca o caminho para mostrar o local do nascimento de São João. Você tem o fogo, o se reunir, o celebrar. Na verdade, o que pode parecer distante no tempo é muito próximo nesse nosso conjugado de elementos.”
Apesar das conexões históricas com celebrações ancestrais do território, as festas juninas que Portugal trouxe ao Brasil já eram profundamente ditadas pela igreja e tinham toda a tradição cristã europeia como base.
Ao longo do tempo, além dos elementos indígenas, a cultura de povos do continente africano também foi incorporada às celebrações dos santos católicos. São danças, músicas e instrumentos presentes em diversas regiões brasileiras.
O tambor, a zabumba e ritmos como o forró e o coco têm origem em manifestações artísticas e culturais das pessoas da África, raptadas e escravizadas pelo império português no Brasil.
Toda essa mistura poderia ter distanciado as festas brasileiras dos festejos portugueses, que também acontecem até hoje. Mas o apelo popular ainda está presente nas duas nações. Assim como a expansão dos eventos, que viraram até atração turística.
O jornalista português Luís Leiria viveu 17 anos no Brasil e hoje está novamente em Portugal. Ele enviou ao Brasil de Fato um relato afetivo emocionante sobre as festas juninas em seu país natal.
Na descrição de alguns costumes é possível notar a semelhança com tradições brasileiras, inclusive no simbolismo dos santos. “Santo António, celebrado em Lisboa, no dia 13 de junho, é conhecido como o santo casamenteiro. São João, o apóstolo do amor, é celebrado na grande festa da cidade do Porto, a segunda do país e a capital do Norte, a 24 de junho.”
Leiria também observa elementos pré cristãos nas festas atuais. “As festas de Lisboa contêm ainda algo dos rituais pagãos e das crenças populares. A brincadeira de saltar sobre fogueiras seria uma homenagem à luz que predomina sobre as trevas e que torna tão longos os dias de Verão. As crenças populares castigam o santo para que ele ajude a encontrar objetos perdidos. Enquanto o objeto não for achado, a imagem do santo ficará de costas, com o rosto virado para a parede. Já o tradicional vaso de manjerico deve ser regado e posto ao luar para trazer sorte nos amores.”
No país ibérico as comemorações aos dias de São João, São Pedro e Santo Antônio levam milhares de pessoas às ruas, atraem visitantes e estão na lista das melhores celebrações populares da Europa.
Em Lisboa, por exemplo, o dia de Santo Antônio (13 de junho), é o mais celebrado. A festa costuma ter celebrações matrimoniais coletivas. Os casais costumam trocar vasos de manjericão, que trazem pequenas mensagens românticas escritas em papel.
No Porto, a festa de São João (24 de junho) tem proporções que mobilizam toda a região. As homenagens ao santo acontecem na cidade há mais de seis séculos e começam na noite anterior ao aniversário dele. Hoje, além das tradições, recebe shows musicais, fogos de artifício e visitantes do mundo todo.
Já nos arquipélagos da Madeira, São Pedro é homenageado no fim do mês, principalmente como protetor dos pescadores. A sardinha assada é uma das receitas mais tradicionais do período e virou símbolo da festa.
Luís Leiria afirma que estas são as verdadeiras festas de rua de Portugal, que reúnem música, comida e coletividade. Mas, assim como no Brasil, algumas regiões com tradição nos festejos passaram por processos de gentrificação e afastamento das populações que construíram as celebrações.
“Característica destas festas é a multiplicação dos arraiais nas praças e ruas estreitas de desenho sinuoso, herdeiro dos bairros ‘mouros’. Nos arraiais há pequenos palcos onde se toca e se dança a música do popular Quim Barreiros, característico autor de letras cheias de duplos sentidos, como por exemplo o refrão o bacalhau quer alho”, diz.
As raízes no interior e nas antigas aldeias também se assemelham ao percurso que as festas juninas traçaram no Brasil, das quermesses e comemorações do campo aos grandes eventos nas regiões metropolitanas. Lendas e misticismos também fizeram a viagem para o ambiente urbano.
A designer, cantora e anfitriã turística, Marta Alexandra da Silva Freitas, nasceu na cidade portuguesa de Santarém e hoje vive em Lisboa e observa um caráter quase místico nos festejos, que celebra desde criança.
“As festas dos Santos Populares, para muitos portugueses que como eu, cresceram e viveram a sua infância, adolescência e início da vida adulta em Portugal, são uma altura do ano meio mágica e mística. Na minha experiência, era como se quase se abrisse um portal de descobertas no meio das permissões a que estas festas convidam.”
Ela destaca que o caráter popular e ancestral permanece, o que também se assemelha à experiência brasileira de celebração.
“É uma altura de ocupação real das ruas, os amigos encontram-se no findar das aulas ou do trabalho, celebram o fim do ano letivo ou de uma etapa de trabalho que será marcada pelas férias que se aproximam. É-se convidado a abrir espaço ao relaxamento, ao divertimento e a celebrar as coisas boas e prazerosas da vida – as amizades, os amores, a comida.”
As palavras de Marta explicitam que mesmo com espetáculos, pirotecnia e tecnologia – tanto no Brasil quanto em Portugal – as Festas Juninas dos Santos Populares são do povo.
“Eu tenho um apreço muito grande, por exemplo, por ver o meu bairro, Freguesia da Ajuda, se juntar na rua neste mês. É como se houvesse um aspecto de comunidade que estamos a resgatar da vida, muitas vezes rápida e impessoal da cidade. Há um sentido de pertencimento quando vemos a banquinha da junta da freguesia com as senhoras a grelhar as sardinhas, os enchidos, as carnes das bifanas, as panelas enormes com o caldo verde ou dos caracóis.”